sábado, 8 de outubro de 2011

ENFIM! A REFORMA


Há muito que João sonhava com a Reforma. Ela passou a representar na sua actividade de Director Geral dos Serviços Públicos, ou mesmo a acenar-lhe, com uma nova vida, uma libertação, enfim, poder ser quem é, e fazer o que tem para fazer. E esse sonho tornava os dias no Serviço mais leves e mais curtos. Olhava para os colegas e para os chefes e sentia o alívio antecipado de deixar de ouvir sempre as mesmas conversas, os mesmos comentários, os mesmos hábitos… O seu rosto retomou alguma cor e passou a andar mais direito, o que a sua coluna muito agradeceu.
João sabia que o dia da Reforma teria um peso emocional e social muito semelhante a outros vividos ao longo da sua vida: a ida para a Escola Primária e o exame da 4ª classe feito fora da sua escola; a conclusão do seu curso superior com a entrega do Diploma e o jantar de família; a ida para o Regimento de Artilharia 1 e mais tarde a sua partida para a Guerra do Ultramar, donde regressou com a alma magoada mas orgulhoso de ter cumprido o seu dever pela Pátria.
Quando regressou de África, nada melhor do que casar e arranjar um emprego “seguro”, no Estado claro, eram estes os conselhos dos seus pais e as vozes do colectivo. E assim aconteceu. O ordenado era baixo, mas tinha férias e especialmente a Reforma, a dita Reforma que garantiria a sua velhice e não cairia na pobreza.
Os sonhos de estudar mais, de viajar, de mudar de cidade ou mesmo de País, de conhecer outras mulheres e … foram sendo adiados à custa de um olho que ia ficando cada vez mais pequeno e das rugas que iam sulcando os cantos da boca. Mas criou dignamente os seus filhos e finalmente vai puder cumprir os seus sonhos há tanto tempo adiados…
Preocupava-o no entanto a relação com a mulher. O que iria acontecer? Ela estava sempre a criticá-lo, a exigir-lhe e o João sabia que a sua auto-estima há muito se tinha esboroado. Vivia como um autómato e as suas emoções estavam algures, num lugar de terra batida. Agora, depois da Reforma passaria a estar inteiramente ao seu dispor. Os filhos tinham abalado e tinham uma relação distante, especialmente com a mãe, usando-a como ela o tinha feito com eles. Nessa relação o João “apanhava por tabela” até porque os filhos, ainda novos para entender, não lhe perdoavam a sua passividade perante as investidas da mãe. Aparecia sempre como “um fraco” o que a mãe gostava muito de sublinhar.
E o dia da Reforma chegou finalmente. Os colegas e alguns chefes fizeram um jantar de despedida e nos discursos foram enaltecidos os aspectos positivos do João, o que o comoveu. Ficou mesmo admirado com alguns colegas, mas pensou: “agora já não lhes faço sombra”, o que era verdade. Emocionou-se, e tal como aconteceu quando regressou do Ultramar sentiu a satisfação do “dever cumprido”.
Em casa não aconteceu nada de especial. Os filhos nada disseram. Ao jantar, os dois silenciosos foram apenas perturbados pelas interrogações da mulher sobre o valor da Reforma e as respectivas datas. Ele tentou contar-lhe o almoço de despedida e a sensação de angústia e de abandono que tinha experimentado, igual ao que tinha sentido ao longo da vida nos momentos mais marcantes socialmente. Até no dia do casamento essa angústia o tinha acompanhado. Parecia agora começar a entender porquê! Mas calou-se, como o fez ao longo dos 35 anos de casamento. Não teve forças para se aproximar da mulher na cama, o que o alertou. Afinal estava livre, ia iniciar uma nova etapa! Estava bem de saúde e com 65 anos bem conservados! O que estava a acontecer à sua libido?!
E uma nova vida começou. João começou a aperceber-se como a sua mente estava carregada. Um turbilhão de imagens, de pensamentos e de emoções passavam na mente como num ecrã, especialmente quando se deitava, o que não o deixava dormir em paz. Ele conhecia esse turbilhão, mas quando trabalhava afastava-o na preocupação do dia seguinte… Mas agora estava “definitivamente de férias”. Sim, de férias, até morrer! Foi tamanho o susto com este pensamento que pensou acordar a mulher. Mas ela dormia pesadamente e de certeza que iria tecer-lhe críticas, mais ainda por a ter acordado.
No primeiro ano de Reforma o João dedicou-se a realizar os planos há muito adiados: reconstruir a casa dos pais que lhe coube em partilhas; ir conhecer os Açores e a Madeira que sempre sonhou ir um dia visitar. Arrumar os livros, os papéis e as fotografias da família. Visitar os familiares afastados que há muito o convidavam para passar umas férias.
Procurou não quebrar o contacto com os colegas e todas as semanas os reformados almoçavam na cantina do serviço. No início dava-lhe uma sensação de renovação, mas com o tempo foi-se apercebendo que existia um fosso entre ele e os colegas no activo. Ele já não pertencia à instituição. Ele tinha sido abatido, como fazem na tropa… E o sentimento de abandono e de rejeição voltou.
Começaram entretanto a aparecer alguns sinais de que o corpo não se sentia bem. Dores persistentes no peito e no estômago, para além das continuadas insónias. Recorreu ao seu médico de família com quem tinha uma boa relação. E aí entrou, como milhares de portugueses, numa peregrinação pelos serviços de saúde, já gastos e superlotados: análises aqui; radiografias, endoscopias, electroencefalograma, tac. acolá, etc. etc. Finalmente chega o diagnóstico – O João está com uma depressão -. 
Ele, João, que tinha aguentado a guerra, os chefes intratáveis, a acção corrosiva da mulher, e tanto desgosto e desilusão que guardava escondida na sua alma, tinha sucumbido à Reforma.
Mas o Dr. Silveira, o seu médico de família, homem experiente, avisado e crente, deu-lhe como receita, os seguintes tratamentos, que o João teria que escolher, que optar: entrar na psiquiatria e eles já conheciam bem esse percurso; ir para a Psicologia mas aí teria que ver “em que mãos se iria meter”; Ir estudar, pintar, ou escrever de acordo com a sua vocação de menino; ir procurar um caminho espiritual, pois que em última instância, dizia o Dr. Silveira citando um psicólogo famoso, Carl Gustav Jung, “a depressão é a ausência de Deus”.
E lentamente a Esperança voltou ao coração do João.
Maria Margarida Oliveira

Sem comentários:

Enviar um comentário